quinta-feira, 5 de março de 2020

COVID19




Por diversas razões, tenho acompanhado de perto os desenvolvimentos relacionados com o surto da doença COVID19. Este problema constitui um excelente exemplo de como as questões relacionadas com a saúde podem ter impacto na economia e também de como as questões económicas podem influenciar decisões políticas e de política e, consequentemente, os resultados em saúde.

Foi precisamente a pensar no impacto económico das medidas tomadas pela China que tomei (tomamos) consciência da gravidade do problema em termos de saúde: pelo menos 760 milhões de pessoas na China tiveram algum tipo de restrições à sua movimentação, muitas fábricas ficaram (e continuam) paradas e algumas cidades transformaram-se em cidades fantasma. Em meados de fevereiro, pelo menos dois epidemiologistas transmitiram publicamente as suas preocupações. Neil Ferguson do Imperial College de Londres, deu uma entrevista televisiva onde assumia a possibilidade de 60% da população mundial ficar contagiada, no prazo de 12 meses, embora reconhecendo a dificuldade de efetuar previsões, atendendo quer à escassez de dados quanto a crianças infetadas, quer quanto aos grupos de maior risco. Quando lhe perguntaram se não estava a exagerar, respondeu: “prefiro ser acusado de exagerar a ser acusado de não ter avisado. De tudo aquilo com que trabalhei este vírus é um dos que mais me preocupa”. De igual forma, Marc Lipsitch um Professor de Epidemiologia da Harvard T. H. Chan School of Public Health avisava que, “a ocorrer uma pandemia, seria de esperar que 40 a 70% das pessoas do mundo ficassem infetadas no próximo ano”. Porém, salientava, “não sou capaz de estimar qual a proporção de pessoas que apresentarão sintomas” e hoje, face aos novos dados disponíveis, reduziu esse intervalo para 20 a 60%.

Quanto mais acompanho a situação, devo confessar a minha perplexidade com a atuação e com as afirmações de quem ocupa os mais diversos lugares - dizem que “o pior vírus é mesmo o do alarme social", vangloriam-se de apertar as mãos de pessoas doentes e fazem questão de ir visitar os doentes e de manter as formas tradicionais de cumprimentar as pessoas, em vez de darem o seu exemplo. Uma notável exceção aconteceu na Alemanha.

Neste momento, como tão bem se explica aqui, o mundo parece estar profundamente dividido entre aqueles que acreditam vamos assistir a um crescimento significativo dos infetados nos próximos tempos e aqueles que acreditam que não será assim. Segundo Cowen, a primeira perspetiva é mais frequente em pessoas com mente analítica, que trabalham com a matemática, finanças e tecnologia e estão habituados a modelizar e a compreender como os pequenos números se podem transformar em grandes números. Os que adotam a segunda perspetiva olham para o passado e concluem que têm sido raras as grandes epidemias no último século. Embora reconhecendo o grande crescimento dos casos, assumem que os cenários maus não são assim tão prováveis (embora não saibam bem explicar porquê). São mais pragmáticos e apoiam-se mais no que veem no seu dia a dia. No setor da saúde, os epidemiologistas compreendem bem as taxas de crescimento exponencial. Muitos, segundo Raquel Duarte et al., acreditam, por isso, que a situação vai evoluir para uma pandemia, embora de dimensões desconhecidas. Porém, prossegue Cowen, muitos profissionais médicos trabalham a pensar em distribuições estatísticas normais e não “acreditam” nessa possibilidade de crescimento – quando alguém vai a uma consulta suspeitam de um caso de gripe típico e é geralmente isso que acontece. 

Nos próximos dias teremos uma ideia do que irá acontecer em Portugal, mas para quem tem estado menos atento, gostava de salientar o seguinte: 
  1. Os países onde se está a registar um número elevado de casos são aqueles onde se estão a realizar rastreios em larga escala. De acordo com a informação que consegui encontrar, a Coreia do Sul já realizou mais de 2000 testes por milhão de habitante e está a realizar diariamente entre 10000 a 15000 testes. A Itália já realizou cerca de 400 testes por milhão de habitante e o Reino Unido 200. Portugal ontem, 4 de março, segundo o relatório da DGS, tinha realizado 12,3 testes por milhão de habitante e receia-se que não tenha capacidade para efetuar 1000 testes por dia. 
  2. Nos EUA, a ausência de testes era ainda pior - no passado dia 1 de março apenas se tinha realizado 1 teste por milhão de habitantes. Vários especialistas americanos têm salientado que os números de casos eram baixos, porque o numero de testes era reduzido, receando-se que o vírus esteja a circular na comunidade há várias semanas e esperando-se um significativo crescimento dos números nos próximos dias. Quer nos EUA quer em Portugal afirmou-se hoje que apenas estamos a ver a ponta do iceberg. 
  3. Espanha concluiu esta semana (apenas no dia 2 de março) que já existiam pessoas infetadas desde meados de fevereiro. A situação apenas foi detetada porque alguns grandes hospitais em Espanha decidiram testar todos os doentes que tinham pneumonias bilaterais para as quais não existiam causas detetadas. Até essa data, a Espanha à semelhança de outros países europeus, apenas testava pessoas que tivessem algum tipo de ligação com o epicentro da epidemia na China ou em Itália. 
  4. Obviamente, se não testarmos, não encontramos casos e eu receio que seja precisamente isso que esteja a acontecer em diversos países, incluindo Portugal. 
  5. A convicção de que não há casos transmitidos na comunidade ou de que há poucos casos faz que não sejam tomadas imediatamente algumas medidas essenciais, por exemplo de proteção dos profissionais de saúde (há profissionais a atender doentes nas urgências sem qualquer tipo de proteção; os profissionais de saúde continuam a ter de realizar o controlo de assiduidade  por registo biométrico, apesar de o parlamento o ter suspendido para os deputados). 
  6. Estima-se que no norte de Itália haja 10% de profissionais de saúde infetados e diversos países têm profissionais de saúde em quarentena, aumentando a dificuldade em responder a uma procura acrescida de cuidados de saúde. 
Por tudo isto, parece-me que devemos tomar consciência rapidamente do seguinte: 
  1. Não está em causa uma gripe normal
  2. Não é preciso entrar em pânico, mas também não podemos, nem devemos, continuar a agir como se nada tivesse acontecido nos últimos dois meses. 
  3. Os alertas não vêm da comunicação social, mas sim das agências internacionais (OMS e CDC  por exemplo), assim como das ordens profissionais (ver, por exemplo, a recomendação da Ordem dos Médicos de adiar conferências, congressos, seminários, simpósios).
  4. A constante desvalorização perante o público das consequências da doença faz com que as pessoas e os profissionais não compreendam as medidas tomadas, não estejam a modificar os seus comportamentos de forma a impedir a propagação da doença e não estejam a tomar as precauções necessárias de modo a minimizar o impacto que decisões como o encerramento de escolas ou a imposição de permanecer em casa possam ter nas suas vidas pessoais e profissionais.
  5. É crucial que se apliquem já as recomendações para a situação de transmissão na comunidade, incluindo o prescindir de "beijinhos, apertos de mão e abraços" e não colocar as mãos na cara (o que não é fácil, pelo que devemos começar a praticar o mais depressa possível). E os mais informados devem começar por dar o exemplo. 
  6. É fundamental assegurar que pelos menos os profissionais de saúde se encontram devidamente protegidos. 
  7. Devemos ter particular atenção com os grupos etários mais susceptíveis.  
Caso contrário, os enormes sacrifícios (pessoais e económicos) suportados em diferentes regiões do globo podem ter sido (ou estar a ser) em vão.